Uma carta sobre o livre debate e o uso político da “ciência” e da universidade pública

Por Humberto Clímaco, Professor da UFG, do Fórum Renova ANDES

Nota Explicativa: os professores Thiago Rangel, José Alexandre Diniz Filho e Cristiana Toscano da UFG formam uma equipe que vem fazendo simulações e projeções sobre números de contaminados e mortos pela Covid-19 no estado de Goiás. A professora Cristiana Toscano foi, recentemente, indicada para compor o Grupo de Trabalho de Vacinas para Covid-19 da OMS.

Junto com outros docentes da UFG e representantes de secretarias do Estado de Goiás, assinaram o “relatório de assessoramento estratégico” que estabelecia a abertura de diversos setores econômicos (segundo o jornal O Popular, 70% da atividade econômica), publicado no Diário Oficial do Estado de Goiás como anexo ao decreto de 19/04 do governador Caiado, conhecido como “decreto de flexibilização da Quarentena”, que passou a valer a partir da sua emissão.

Após o decreto, no qual o governador adicionou ainda a abertura de salões de beleza e igrejas, dentro de determinadas condições, os ônibus, terminais e pontos de ônibus lotaram e o número de casos confirmados no estado passou de 393 para 12.513 e o número de mortes de 18 para 255 no dia 17/06, dia em que ocorreu a conferência do professor Thiago Rangel no Café com Ciência, evento de divulgação científica sediado no Instituto de Física da UFG.

Durante o evento, questionei o professor sobre a pertinência de eles terem assinado, em nome da UFG, tal decreto. O resultado deste “debate” se encontra no relato abaixo, em carta de minha autoria endereçada ao diretor do Instituto de Física da UFG:

“Caro Prof. Dr. Tertius Lima da Fonseca, diretor do Instituto de Física da UFG,

No dia 17/06, tive a oportunidade de participar do Café Com Ciência, organizado pelo IF, com que teve como conferencista o professor Thiago Rangel (ICB-UFG), com o título “Entendendo uma pandemia com modelos computacionais”.

Após a apresentação do professor, me inscrevi para fazer uma pergunta e, quando me foi passada a palavra, comentei, então, que fazia parte de um grupo de professores que se incomodou com a vinculação do nome da UFG à reabertura do comércio em Goiás após o decreto de 19/04. Um detalhe importante, que não citei no momento, é que, até o dia 19/04, tínhamos em Goiás 393 casos e 18 mortes confirmadas; no dia em que a atividade se realizou, eram 12.513 casos e 255 óbitos; hoje, dia 18/06, o prefeito de Goiânia, seguindo uma tendência comum nas cidades do interior do estado, anunciou data para reabertura dos shoppings e o comércio de rua. Afirmei que o nome dele sempre esteve publicamente associado à defesa do isolamento social, mas que o fato de ele ter assinado o “relatório de assessoramento estratégico” anexado ao decreto de 19/04 do governador (como disse a professora Cristiana Toscano, sem autorização do mesmo) e ao fato de que o governador acabou por usar esse relatório para abrir boa parte do comércio, incluindo setores como salão de beleza e igrejas, não previstos no relatório, isso prejudicava a imagem da UFG. Perguntei se ele não achava que seria o momento de os membros da UFG proporem um novo relatório, orientando o fechamento dos principais setores.

Antes de eu terminar meu raciocínio, o professor Thiago me interrompeu perguntando “qual é mesmo sua pergunta?”, ao qual eu respondi tentando terminar o que estava dizendo.

Novamente me interrompendo, o professor Thiago afirmou que não foi eleito, não toma decisões, que o governador e o prefeito foram eleitos e tinham o direito de fazer o que quisessem, que a UFG não tem direito de pedir retratação nenhuma, que seu trabalho “é científico, não é político”. Disse que, assim como eu tinha ficado incomodado com a UFG ter assinado o decreto, que eles ficam incomodados com o fato de eu fazer esse tipo de pergunta, por supostamente “politizar” a fala deles. Disse para eu parar de fazer esse tipo de pergunta e que eu estaria “criando um debate que não existe”. Perguntei, então, se a entrevista do professor José Alexandre, no dia 15/05, à Rádio 730, dizendo que Goiás não precisava de um novo decreto, não tem implicações políticas e sanitárias, e disse que a CNN relatou que após o decreto de 19/04 os casos em Goiás cresceram em por volta de 400%. Então, ele repetiu um bordão conhecido de todos nós: “próxima pergunta”. Eu, claramente irritado, respondi que estávamos na universidade, que ele não é o Bolsonaro na porta da Esplanada, que eu iria terminar de fazer minha pergunta. Continuei perguntando e, nesse momento, para minha surpresa, o professor Andris, do Instituto de Física, me silenciou, desligando meu acesso por microfone à reunião.

Houve mais algumas perguntas e, no final, o professor Thiago afirmou que “estamos extremamente abertos pra todas as sugestões, todas as críticas, todos os comentários do ponto de vista científico, principalmente aqueles que forem metodológicos… estamos totalmente abertos… porque o objetivo aqui é trabalhar como cientista e fornecer informação baseada em evidência para quem precisa tomar decisão. Aí a gente entrega o papel, tudo super documentado, aí dá um passo atrás, porque nós não somos gestores, nós não somos tomadores de posição”.

Curiosíssima afirmação para quem tinha acabado de se recusar a responder uma pergunta! Caberia muito o que dizer sobre a concepção de que entregar relatórios técnicos para os políticos justificarem suas decisões políticas não seja um ato político, mas, nesse espaço, nos limitemos a mostrar nosso espanto com a posição de que o cientista deva ser como um avestruz, fingindo desconhecer que os políticos usam seu nome para seus próprios interesses, à revelia da vida da população; e de que não cabe ao cientista questionar o governo, nem a outros cientistas questionarem o cientista. E acha certo continuar dando entrevistas defendendo o isolamento social sem, no entanto, recomendar qualquer medida formal ao governador nesse sentido, deixando o governador usar o chamado “decreto de flexibilização” de 19/04 e o nome da UFG como justificativa científica.

Considero que a atitude do professor Thiago de se recusar a responder minha pergunta é incompatível com o espírito de crítica próprio da Universidade e com a ideia do Café com Ciência, de diálogo sobre temas científicos. Mesmo estranhando que um relatório estratégico tenha contido a logo da UFG e o professor Thiago Rangel e os demais membros da UFG que assinam o tal decreto de fato estarem falando em nome da instituição sem terem sido imbuídos desse mandato por nenhuma instância ou autoridade da universidade, o fato é que, a partir do momento em que o trabalho deles é feito como se fosse “da UFG” e dessa maneira usado publicamente pelo governador, eles têm, sim, a responsabilidade de prestar contas à comunidade acadêmica da universidade de seus atos em qualquer espaço da universidade, e muito mais numa apresentação sobre tais estudos.

Já fiz questionamentos semelhantes ao professor José Alexandre e à professora Cristiana Toscano e ambos sempre me trataram de maneira cortês. Meus objetivos com esses questionamentos não dizem respeito a um passado que não temos o poder de mudar, mas sobre um futuro que podemos construir. O decreto de 19/04 é um documento histórico de importância maior para a compreensão da evolução da Covid-19 em Goiás. O que é que justifica “a UFG” não emitir um novo parecer com a recomendação formal de que sejam fechados setores não essenciais, já que todos os estudos, inclusive os seus, mostram que após a abertura iniciada, que se amplia a cada dia, feita antes do pico de casos e sem testagem, só aumentaram o número de contaminações e de mortes? Se o professor tem dificuldades de medir as consequências políticas de seu trabalho, que meça, ao menos, e discuta com seriedade intelectual, as possíveis consequências sanitárias dos mesmos: o debate sobre essas consequências, se “não existe”, hoje, é urgente que comece a existir.

Concluo, professor Tertius, dizendo que ainda menos digna do ambiente próprio da academia, me pareceu a atitude do professor Andris, pela posição que ele ocupava de responsável pela conferência. Estávamos num evento numa universidade pública, na qual sou professor, numa atividade aberta ao público; além disso, minha pergunta, de qualquer ponto de vista, não pode ser vista como desrespeitosa, nem tratava de questões privadas ou invasivas e versava sobre o tema da conferência. Qual foi o critério utilizado para desligar meu microfone, o fato de o conferencista ter se sentido incomodado com minha pergunta? É essa a concepção de ciência que o professor Andris pretende passar para os alunos lá presentes no Café com Ciência?

Por fim, reafirmo minha plena convicção de que o Instituto de Física e sua direção, assim como a UFG, vão saber manter acesa a chama do debate científico, o que inclui a reflexão crítica sobre suas próprias ações.

Professor Humberto Clímaco – Instituto de Matemática e Estatística”

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